terça-feira, 27 de agosto de 2013

Conversas com a Morte - Final


Sou obrigado a admitir que tenho achado os últimos dias particularmente entediantes. Dia após dia, semana após semana, mês após mês... Tudo muito igual, tudo muito chato. As pessoas já tem notado minha mudança, alguns dizem que estou ficando louco... Talvez elas estejam certas. Mas acho que isso não importa, sempre vi a sanidade como algo muito entediante, muito previsível, mas acho que isso não tem importância.
Acabo de chegar a minha casa e já vou em direção ao quarto. Ele me parece sombrio, escuro. De fato não consigo enxergar absolutamente nada, apenas distinguir as silhuetas das coisas no meio da sombra. Tento acender as luzes e nada. Era só o que me faltava, as luzes queimaram. De repente vejo em um dos cantos uma pequena chama, acendendo o que me parece ser um cigarro ou algo do tipo.

– Então é você... Achei que não o veria mais.

– Que não nos vemos? Até onde eu me lembre, essa é a primeira vez que nos encontramos. É a primeira vez que você permite que eu me apresente a você.

A voz dele era estranhamente... Familiar. Algo estava errado, aquele não era meu companheiro habitual. Bem, ele poderia apenas ter mudado sua forma. Talvez aquilo tudo fosse apenas mais um de seus jogos. Dirigi-me até a janela e abri as persianas. A lua estava cheia e sua luz banhou todo meu quarto, inclusive o meu visitante, deixando visível todo o seu corpo, com exceção do rosto. Suas roupas eram surpreendentemente casuais, muito parecidas com as minhas para dizer a verdade. Não, não eram apenas parecidas, aquelas eram as minhas roupas, as mesmas que eu estava vestido naquela hora.

– Quem é você?

Ele riu.

– Quem sou eu? Imaginei que você saberia quem sou no momento em que você me visse.

– Se eu conseguisse ver você.

– De fato, peço perdão. Talvez isto deixe as coisas mais claras.

Ele deu um passo em minha direção, deixando que a luz da lua iluminasse seu rosto. Por alguns segundos, que naquele momento pareceram longas horas, fiquei atônito, sem nenhuma reação. Aquele homem era idêntico a mim, em tudo. O rosto, o corpo, até mesmo a postura. Tudo era idêntico. Mas, ao mesmo tempo algo estava estranho, algo não se encaixava. Não digo apenas pelo fato daquele espectro estar fumando, coisa que jamais fiz em toda a minha vida, me refiro a algo mais subjetivo. Seus gestos e expressões estavam muito severas, isso sem falar nos seus olhos que refletiam um ódio doentio. Mesmo sendo idêntico a mim, eu estava amedrontado em sua presença, amedrontado como nunca estivera antes.

– Agora você me vê – Ele disse enquanto sorria cinicamente. Já sabe quem eu sou?

Juntei nesta hora o pouco de coragem que ainda me restava. Aquilo não era real, ele não era real, era apenas uma peça que minha mente me pregava.

– Você não é nada. É apenas uma ilusão.

– Péssima resposta, muito comum, muito usual. Aliás, eu tenho a impressão que você já respondeu algo assim pra alguém – Lembrei-me de minha primeira conversa com meu convidado habitual – Mas isso não importa, eu não esperava mesmo que você descobrisse quem eu sou.

– Então por que você não me diz?

– Não é obvio? Eu sou você.

Não contive meu riso. Aquela, sem dúvidas, era a coisa mais estúpida que já tinha ouvido em toda a minha vida. Apenas mais uma brincadeira de meu companheiro.

– Brincadeira? Não meu caro, eu posso lhe garantir que eu sou bem real.

Ele... Ele tinha acabado de... Ele adivinhou o que eu estava pensando? Mas como?

– Na verdade é bem simples. Nós somos a mesma pessoa, seus pensamentos são os meus pensamentos. Pra mim, o que você pensa é tão claro que é como se você estivesse gritando a todos os pulmões cada palavra do que passa pela sua cabeça.

Neste momento eu congelei. Não havia mais nada o que eu pudesse falar ou pensar, estava sem nenhuma reação. Por fim consegui formular a única pergunta que passou pela minha mente naquele instante.

– Como?

– Como? Isso importa? Você sequer entende quem eu sou e já está ai paralisado, como um cão medroso, e ainda assim tem a audácia de me faz perguntas estúpidas como esta? Você me dá nojo.

Neste momento ele veio rapidamente em minha direção, me arremessando. Nunca vi ninguém tão forte. Eu simplesmente voei para trás com o golpe, me chocando com violência contra a parede, caindo no chão logo em seguida. Eu estava acabado. A dor era insuportável, mas ele sequer parecia ter se esforçado para me fazer aquele dano. Enquanto eu estava no chão, ele andava calmamente ao meu redor, ecoando por todo o quarto sua risada macabra.

– Ah perdão, eu te machuquei? Não foi minha intenção, acho que não tenho muita noção da minha própria força. Ce la vite. Mas não se preocupe – Ele se abaixou, socando violentamente uma de minhas costelas fazendo-a quebrar, a dor me fez soltar um grito desesperado – Feridas se curam meu amigo.

– O que foi eu te fiz?

– Nada. Absolutamente nada.

– Então por que...

– Por que eu estou fazendo isso? Sei lá, to entediado. Você não tem ideia de como isso é divertido.

Dizendo isso ele me chutou violentamente na barriga. Com a força do chute, cheguei a sentir o gosto de sangue subir em minha boca. Eu estava cada vez mais perto do meu fim, e nem entendia por que. Ele novamente se agachou, desta vez a minha frente, chegando-se a meu ouvido.

– Sabe, eu não sou uma boa pessoa. Mas acho que isso você já sabe. O que eu não compreendo, é como você, um ser tão insignificante, inútil e sem talento algum, conseguiu me manter preso por tanto tempo.

De que ele estava falando? Tudo era muito confuso. E a dor... mal conseguia respirar, ainda mais pensar em tudo aquilo.

– Pr... Preso?

– Sim, preso. Você ainda não entendeu, não é mesmo? Eu não falei exatamente a verdade quando disse que eu sou você. Pra ser mais especifico, eu sou uma parte sua. Uma parte que você tem mantida presa por todos esses anos. Eu sou o teu ódio, tua ira, teu rancor, tua magoa. Todas as vezes que você quis fazer algo de ruim com alguém, era a minha voz te guiando. Todas as vezes que você quis esmurrar a cara de algum imbecil, era a minha mão que estava fechando. Mas você sempre me reprimiu, sempre me aprisionou. Eu sou tua maldade, sou teus defeitos.

– E... Por que... Agora...

– Eu estou aqui? Por que nos últimos tempos, você tem tentado limpar teu interior de todo, digamos, lixo inútil. Você achou que poderia se livrar de mim, mas eu também sou o que ajuda a te definir. Nem ser humano é perfeito, nem nunca será. Todos nós temos erros e falhas que tentamos esquecer, que tentamos esconder. Quer conhecer a suas?

Ele me pegou pelo pescoço, me levantou e me pressionou contra a parede. Nessa hora ele apertou meu pescoço com mais força, e com uma única mão me suspendeu. Enquanto eu sufocava, comecei a ver cada gesto errado que já tive, cada ato abominável que tinha cometido, cada pessoa que tinha passado pela minha vida e eu tinha magoado. Ao fim desta sessão, eu sentia repulso e nojo de mim mesmo. Mais que qualquer coisa eu desejava a morte, eu merecia a morte.

– Todos erram, alguns mais outros menos, mais todos o fazem. Mas você é um homem bom... Eu sei disso, eu acredito nisso. Você é o mestre de teu destino, não ele.

Quem disse isso? Não foi meu agressor, ele estava ocupado demais rindo de minha morte. Então quem foi. Voz de mulher, mas que mulher? O que importa? Ela estava certa, eu não sou perfeito, mas também não sou um monstro, eu sou um homem bom. Eu aceito meus erros. Eu aceito meus defeitos.

– Eu... aceito meus... defeitos...

– Você me aceita? Não me faça rir mais do que já estou rindo.

Com meus últimos resquícios de força, agarrei o punho dele. De repente, me senti incrivelmente revitalizado, toda dor, toda angustia, todo sofrimento haviam sumido e dado lugar a uma força que não sabia que eu tinha. Rapidamente me desvencilhei de sua mão que ainda tentava me estrangular. Agora estávamos os dois, em iguais condições, nos encarando. Eu não tinha mais medo.

– Impossível, eu sou mais forte... Eu sempre serei mais forte.

– Não, você está errado. Você é parte de mim, apenas uma pequena parte. Você não é mais forte, nem nunca será.

Dito isto, ele se desfragmentou em uma espécie de fuligem e começou a se fundir com meu próprio corpo. Novamente éramos um.

– Por um instante, achei que você não conseguiria.

Aquela voz, a mesma voz feminina. Era ela então. Eu devia ter me lembrado, mas afinal, já fazia um tempo desde nosso último encontro.

– Então tudo isso não passou de uma artimanha sua. Olha, isso foi cruel até pra você.

– Criança, você tem minha palavra que não tive nada haver com aquilo. Por mais de uma vez quis lhe ajudar, mas não podia. Peço perdão.

– Não peça, é graças a você que ainda estou aqui.

– Não criança. Tudo o que eu fiz foi te lembrar o que você é. Você é mais forte. Sempre será mais forte. Acho que não tenho pra te ensinar.

Havia tristeza em seus olhos. Tristeza como aquela vista em quem se despede de um amigo, ou de um amante. Eu sorri.

– Sempre terei o que aprender com você.

Neste momento toquei sua face, por onde escorria uma lágrima, e beijando seus lábios me despedi de minha melhor amiga e maior professora. Ao abrir os olhos, estava sozinho. O sol já nascia e eu entendia um pouco mais sobre mim. Apesar do peso de saber que eu não a encontraria mais, restava-me ainda tudo o que ela havia me ensinado, e tudo o que ainda vou aprender.

Arte de Bernardo Fontaniello. 


Conversas com a Morte - Parte 4


Fim de mais um dia, acabo de chegar de minha aula e já quase que espero meu inconveniente visitante. Pra falar a verdade, acho que já estou até acostumado com a presença dele. Abro a porta de meu quarto... Havia alguém lá dentro, mas não quem eu esperava. Era uma mulher, de uns vinte e poucos anos, pele clara, cabelos brancos, trajando um longo vestido negro. O que mais me assustava nela eram seus olhos. Não havia cores, eram somente brancos, vidrados... Não havia vida em seus olhos. Ela estava sentada a frente de uma pequena mesa com um jogo de xadrez armado em cima dela. Quando me viu, ela abriu um sorriso que era um tanto quanto perturbador. Antes que eu tivesse qualquer chance de perguntar alguma coisa, ela falou com uma voz extremamente mansa, e surpreendentemente doce.

– Finalmente você chegou. Estava te esperando.

– Desculpe-me moça, nos conhecemos?

– Claro que sim. Acho que sou a pessoa que mais te conhece neste mundo. Você só não está me reconhecendo, mas não se preocupe isso é algo natural, afinal resolvi vir hoje com uma roupa diferente do que você está habituado.

O jeito de falar, a maneira arrogante com que ela me olhava, se é que olhava, até mesmo o sorriso, um misto de ameaça e cinismo. Não havia dúvidas, aquela mulher era meu companheiro, mesmo que fosse difícil acreditar.

– Vejo que já me reconheceu... Isso é bom. Agora por que não se senta, e joga comigo? Aliás bonita roupa, perfeita para a ocasião.

Mais uma de suas gracinhas. Desta vez ela havia mudado minhas roupas, só não sei como. Se antes eu estava com minhas roupas normais, agora eu vestia um fraque, eu acho, branco como o restante do traje. Em nenhum ponto que pude ver havia qualquer sujeira, por menor que seja.

– Meio cedo para o ano novo, não acha?

Meu comentário à fez rir.

– É talvez. Sei que não faz bem o seu estilo, mas achei que a ocasião pedia algo mais formal. Além disso, você fica extremamente elegante assim.

– Que seja.

– Bem, por que você não se senta? As peças brancas são suas, o movimento inicial é seu.

Calmamente me sentei em meu lugar e fiz meu primeiro movimento.

– Jogar xadrez com a morte, isso não é meio clichê?

– Um pouquinho, mas pra dizer a verdade, eu até gosto de clichês. São saídas bem convenientes para determinadas situações.

– Entendo, mas devo advertir que este vai ser um jogo extremamente entediante para você, não sou muito bom nisso.

– Ora, mas não é você que se orgulha tanto em seu um grande estrategista? Achei que jogasse divinamente. Aliás, acaba de perder seu bispo.

– E você sua torre – Continuamos conversando enquanto jogávamos. Acho que nunca me interessei muito em xadrez.

– Entendo.

– Importa-se de me dizer o significado de tudo isso?

– Por que acha que há um significado?

– Ora, as roupas, o jogo, as peças... Meio óbvio não acha? Além disso, com você nada é por acaso, tudo acontece de um modo especifico por conta do teu querer.

Novamente ela riu. A essa altura, eu já havia capturado um bispo e um cavalo, em contrapartida, já havia perdido os dois cavalos.

– Talvez você tenha razão. Lembra que eu disse que gosto de clichês? Pense bem, não há nada mais clichê que este jogo. O bondoso e nobre cavaleiro branco mede forças contra o terrível demônio negro e suas artimanhas. Não consigo pensar em nada mais hollywoodiano que isso. Uma batalha do bem contra o mal.

– Nunca olhei pra você como uma representação do mal.

– Sei que não. Mas não me referia a sua compreensão, me refiro à compreensão geral, a das pessoas a sua volta. Veja, desde que nasceu você foi criado para ser mais um. Para pensar do mesmo jeito, para falar do mesmo jeito, para agir do mesmo jeito. Mas você sempre foi mais rebelde, mais questionador... E por quê? Por minha causa. Por causa da minha consciência que sempre esteve em você, crescendo, se desenvolvendo. Até que um dia eu apareci, e te ajudei a quebrar seus grilhões, te tirei do cabresto. Eu te fiz querer sair da mesmice. Sair do caminho do gado. Aos olhos da sociedade, eu te denegri, eu sujei o branco de suas roupas. Não importa o que você pensa sobre mim, aos olhos de todos, eu sou o mal. Xeque.

Meu rei era ameaçado pela torre dela, não havia muito que fazer. Não podia mexê-lo sem levar o mate. Fiz a única coisa que podia, coloquei minha dama à frente ao rei. Ao sacrifica-la, salvei o rei e o jogo, e ainda havia capturado sua torre. Estava sem nenhuma peça, a ela sobrava à dama.

– Vejo que você não pode mais vencer.

– É o que parece. Talvez ainda me reste o empate. Estranho, achei que o bem sempre vencia o mal.

– Não desta vez criança. Xeque-mate.

Olhei o tabuleiro. Sua dama estava ao lado do meu rei, qualquer movimento que fizesse, significava a sua captura, assim como se eu passasse. Se eu comesse a dama, seria capturado pela torre, não havia o que fazer, já tinha perdido. Espere um momento... Algo estava definitivamente errado, não havia como ela fazer aquela jogada.

– Você não tinha mais peças, eu já havia capturado suas duas torres, só restava a dama.

– De fato.

– Você trapaceou então.

– E qual é problema disso? Regras são feitas para ser quebradas. Você não entende não é mesmo? Esse era um jogo que você não poderia vencer porque você ainda segue as mesmas regras empoeiradas, ditadas por tolos. Mesmo tendo perdido o cabresto, você ainda segue o gado. Mesmo sem os grilhões, você ainda age como um escravo. Mesmo sem a venda, você mantém os olhos fechados.

Não pude responder. No fundo eu sabia que nada em minhas atitudes havia mudado. No fundo eu sabia que ela tinha razão.

– Não se preocupe criança, isso leva tempo. Tenho fé em você. Diga-me uma coisa, quem é seu rei?

– Meu rei?

– Sim, veja as peças de seu jogo. Todas elas se sacrificaram por seu rei. Seus cavalos, suas torres, seus bispos, seus peões. Todos capturados a fim de assegurar a vitória do rei. Até mesmo a dama, a mais forte das peças, teve um fim deprimente e patético. Tudo pelo rei. Pelo que você se sacrificaria criança? Qual é seu rei?

Sem dúvida aquela não era uma pergunta fácil. Como saber pelo que me sacrificaria. Pelo que entregaria minha vida. Não, eu estava errado, não era tão difícil assim responder.

– Meu rei são as pessoas que amo e as ideias em que acredito. Por elas daria minha vida.

– Boa resposta criança. Por isso acredito tanto em você.

Ela se levantou e se reclinou levemente em minha direção, beijando meu rosto. Quando se levantou estava em sua face um sorriso doce. Ela estava preste a ir embora, e desta vez eu tinha a impressão que aquela seria a última vez que veria minha visitante... Não, não apenas minha visitante, minha amiga.

– Antes de você ir embora, gostaria de saber uma coisa. Qual é o seu rei?

Ela desaparecia no ar como fumaça. Eu já estava vestido novamente com minhas roupas e o sol já nascia. Perdi totalmente a noção de tempo. Ela sorriu.

– Você é meu rei criança...


Não esperava aquela resposta. Mas até que era compatível com ela. Imprevisível como sempre. Acho que já era hora de dormir. Em minha cama um rei preto. Tudo que sobrou daquela noite. Acho que vou guarda-lo... Como recordação.

Arte de Bernardo Fontaniello. 

Conversas com a Morte - Parte 3


Outro terrorista maluco que ganha às páginas dos jornais. Desta vez foi um atentado à bomba que atingiu um evento qualquer que acontecia em... Onde mesmo? Nem sei mais. Parece já ter virado um hábito, nem nos surpreendemos. Agora começa tudo de novo, um grupo radical assumirá a autoria do ataque, simpatizantes queimaram bandeiras em celebração, a ONU, o Vaticano e uma infinidade de políticos e ONGs sem importância condenaram o atentado e por fim um governo totalitário vestido de trajes democráticos atacará ferozmente um país cheio de água negra com a desculpa que a guerra manterá a paz. Meio ridículo se você pensar bem... Diante de tudo, foi impossível conter meu assombro.

– Meu Deus.

– Deus? Não sabia que você era do tipo religioso.

Desta vez admito que ele conseguiu me assustar. Não foi o fato de ele ter surgido do nada ao meu lado, já havia me acostumado com isso. É que desta vez ele não estava como sempre, parecia mais sombrio eu acho. Suas roupas, seus modos, até suas expressões estavam estranhas, desgastadas eu acho. Eu não sabia bem o que era, mas tinha certeza que havia algo diferente em meu convidado...

– Então é de religião que iremos tratar hoje?

– Para ser sincero prefiro evitar esse tema, não gosto de falar a respeito de bobagens. Além do mais, tive muito trabalho hoje.

– Sim, eu vi nos jornais.

– Imagino que sim. É incrível, mas a estupidez humana consegue me surpreender a cada dia. Olha, achei bem interessante que a primeira coisa que ouvi de você hoje, foi um clamor a uma divindade.

– Por quê? Pelo que sei, esta é uma expressão bem comum.

– Por isso mesmo. Ela é extremamente comum... É engraçado pensar o quanto a figura de deus está ligada a cultura humana. Acho que vocês dão créditos demais a algo que pode nem existir.

Ri enquanto ele falava.

– Achei que não quisesse falar de religião.

– Mudei de ideia.

– Entendo. Você não crê em Deus?

– Sabe, não sei ao certo. Acho que não consigo crer naquele deus que é passado pelas religiões modernas. Ele me parece tão... Cruel. Veja por exemplo o cara que orquestrou este ataque. Quem você acha que deu as ordens a ele?

– Deus?

– Pelo menos na cabeça dele, sim. Pense bem, é possível que ele achasse que era apenas um instrumento nas mãos de uma força maior. Logo, quem foi o responsável, a peça ou o jogador.

– Pode até fazer sentido, mas até onde que eu sei, nenhuma religião endossa atos como estes.

– Mais ou menos. Essas ideias que discutimos por exemplo. Imagine que elas alcançassem um grande número de pessoas, quantas interpretações diferentes teriam? Interpretações que muitas vezes não teriam nada haver com você ou comigo. Com as religiões é assim. Alem do mais, o ser humano tem certa tendência ao caos e ao ódio. Por isso a figura de deus existe, e mais, por isso que o inferno existe... Se não fosse assim, não tenho dúvidas que vocês já teriam se destruído há muito tempo. Deixe-me dar uma visão mais ampla disso tudo.

Neste momento ele colocou uma espécie de manto ou véu diante de meus olhos, impedindo minha visão. Quando ele retirou, instantes depois, não estava mais em meu quarto. Estava em um tipo de laboratório, daqueles onde se fazem os experimentos e testes que as entidades de proteção dos animais tanto odeiam. A minha frente havia uma redoma de vidro dividida em duas por uma tabua negra. Dentro havia dois grupos de ratos, cada um de um lado, um branco e outro negro.

– Que espécies são estas?

– Não me admira que você não conheça. É uma espécie nova, mais inteligente e evoluída em comparação as demais... Bom, mais ou menos. Eu batizei de Rattus Sapiens.

Rattus Sapiens? Olha sutileza não é seu ponto forte. Mas me diga uma coisa. Até onde eu sei, testes assim são feitos com camundongos.

– Realmente, mas como eu disse esta é uma espécie nova, e se encaixa melhor no meu experimento por conta de uma característica que você achará bem interessante. Veja só.

Ele retirou a tabua que separava os dois grupos de ratos, expondo um ao outro. Em poucos instantes, os ratos se amontoaram em torno de seu próprio grupo, tomando o máximo de distância possível entre eles e ficaram se encarando, nenhum deles tinha coragem de sair de seu próprio amontoado. Mesmo sendo da mesma espécie, nenhum deles tinha coragem de interagir com o outro grupo.

– Viu só? A desconfiança e o medo pairam em ambos os grupos, mesmo eles sendo basicamente iguais, só mudando a cor. Agora veja o que acontece com todo esse medo quando existe certa... Motivação em jogo.

Neste instante, meu companheiro colocou no meio da redoma um prato cheio de grãos, suficientes para alimentar os dois grupos com facilidade e ainda sobrar. Mesmo assim, no momento que viram o prato com a comida, o comportamento mudou. As duas populações avançaram ferozmente em direção ao prato, mas ao invés de simplesmente comerem juntos, começaram a se atacar, com as unhas e as presas, visando matar os rivais. Ao fim de dez minutos, restavam somente um rato branco que ainda lutava contra dois ratos negros. Entretanto, os três estavam tão machucados, que parecia impossível para qualquer vencedor aproveitar os despojos. Eles iriam morrer, e o prato permaneceria cheio, do mesmo modo que quando o conflito começou.

– Realmente incrível.

– Não é? Acho que me enganei... Qualquer outra espécie iria ficar feliz em dividir o alimento, desde que também se alimentasse. Estes pequenos ratos não. Preferiram morrer a aceitar a presença do outro. Talvez eles não fossem tão evoluídos assim...

– Acho que não.

Dito isso, tudo ao meu redor se fragmentou. Estava de volta ao meu quarto. Meu companheiro parecia ter recuperado a feição serena que lhe era de praxe.

– Sabe... Talvez eu também estivesse errado sobre Deus. Talvez ele até exista... Acho que ele só está com muito medo de vocês.


Ele se sentou ao meu lado, na tela do meu computador uma nova notícia. Cinco pessoas da mesma família haviam sido mortas em uma chacina em São Paulo. Segundo a polícia o motivo do crime foi um desentendimento com um dos vizinhos por conta de um jogo de futebol... Rattus Sapiens... Realmente sutileza não é o forte dele.

Arte de Bernardo Fontaniello. Texto publicado originalmente aqui.

Conversas com a Morte - Parte 2


Cada vez mais me convenço que habilidade social não é uma das qualidades de minhas alucinações. Pensando bem, esse também não é meu ponto forte, mas ficar me encarando por mais de 10 minutos enquanto escrevo não é lá muito agradável.

– O que você está escrevendo ai? Algo sobre mim?

– Por que acha que é sobre você?

– E sobre o que mais seria? Cá pra nós, ultimamente você estava sem ideias... Ai eu apareci. E olha que pra falar a verdade, acho que essa ideia nem é sua.

– Que?

Ele riu.

– Você talvez tenha visto ou ouvido algo assim em algum lugar, só não se lembra... É típico do homem fazer isso. No fim das contas, você realmente acha que aquilo é algo que você criou, mesmo não sendo.

– Entendo... Eu acho.

– Aliás, pra dizer a verdade, não acho que você teria a capacidade de criar algo tão complexo quanto eu.

– Você realmente tirou o dia pra me encher não é mesmo?

– Criança, não é você mesmo que diz que sou apenas uma alucinação sua. Logo, tudo o que digo, tudo o que sou é fruto da sua cabeça... Não sou eu que penso assim, é você. Na verdade, nós dois sabemos que tudo o que eu digo é verdade. Você acha que tem algum talento? Existem milhões de pessoas no mundo com o dobro... Não, o triplo da sua genialidade. Comparado a elas, estas palavras desconexas, estas linhas mal escritas não são nada.

– E daí? Escrevo pra mim mesmo. Por meus próprios motivos.

– Isso é o que você diz, mas sabe que não é verdade. Você escreve estas porcarias pras pessoas verem e te elogiarem. Dizerem que você é um grande escritor, que você tem um grande talento... Você faz tudo pra chamar atenção. Mas mesmo assim...

– Mesmo assim?

– Eu lhe disse uma vez que ma definir como uma mera alucinação é quase uma ofensa, lembra-se? Eu disse por um motivo muito simples... Você não tem controle sobre mim, eu escolhi você. Eu escolhi falar com você. Você é apenas uma forma de me entreter. Mas devo admitir que você pelo menos me diverte. Veja eles – Ele apontou a meus colegas que estavam na sala enquanto eu digito – Cada um deles perdidos em suas fantasias, assistindo suas caixas de Pandora se abrirem em suas frentes. Totalmente entediantes cada um deles. E é nesse ponto que vocês se diferenciam. Você não me irrita... Tanto.

– Caixa de Pandora não é?

– A caixa de todos os males. Você sabe qual é o maior mal que aflige a humanidade nos dias de hoje?

– Qual?

–A ignorância... Todos estão tão preocupados com suas vidinhas medíocres que não buscam conhecimento, ou mesmo compreender outros pensamentos. Sabe qual é o resultado disto? Preconceito, intolerância, estupidez. Eles pegam algumas palavras escritas em um velho livro empoeirado e faz daquilo um manual macabro que só sabe perpetuar o ódio e a escravidão.

– Tenho que admitir que essas caixas como você as chamam, não ajudam muito.

– Pra dizer o mínimo. Elas emburrecem ao mesmo tempo em que entretém. Escravizam ao mesmo tempo em que divertem. Chega a ser amedrontador imaginar aonde isso vai dar. Por isso gosto tanto de falar com você... Você não é tão alienado. Pelo menos tem alguma consciência... Talvez mais que alguma.

– Talvez... Quem sabe?

– Em breve saberei... Sou realmente bom nisso, sou bom em conhecer as pessoas, em entendê-las.

– Não, você não é... Você é apenas uma alucinação, fruto da minha cabeça, de alguma paranoia ou problema psicológico meu.

Nesta hora ele pareceu realmente incomodado com o que eu disse.

– Pare de tentar simplificar tanto. Nem eu, nem você somos tão simples assim. Sabe disso muito bem.

– Talvez.

– Além do mais, se você estivesse incomodado tanto assim comigo, sabe muito bem como me mandar embora... Na verdade é bem simples.

– Basta que eu volte a aceitar as regras, que eu volte a abrir minha caixa.

– O problema não é a caixa, é o amor a ela. É a deixar pensar por você, ela tomar suas decisões... Na verdade é mais simples, é mais fácil assim. Isso me irrita um pouco em vocês... Sempre em busca dos caminhos mais fáceis. Não se esforçam, tentam sempre dar um jeitinho. Mas, fazer o que não é? É típico de vocês, de sua espécie.

– De minha espécie... Você adora usar esse argumento.

– Falha minha. Peço perdão, talvez seja uma tendência humana generalizar as coisas.

– Humana? Agora você é humano? Realmente é difícil te entender.

– Isso porque é difícil te entender... Lembre-se, eu sou parte de você. Mas ao mesmo tempo...

– Ao mesmo tempo você é algo que eu não controlo.

– Exatamente. Sou como se fosse o demônio oculto na sua alma. A própria forma como você me vê é suficiente pra deixar a maioria das pessoas assustadas, mas não com você, acho inclusive que você aprecia minha presença. Tenho essa impressão. Afinal de contas, não existem muitos os que são como você. Não são muitos os que têm coragem de se libertarem de suas amarras, de suas correntes. Aliás, deixe-me mostrar uma coisa. Olhe mais uma vez para eles.

Quando olhei para meus colegas eles não estavam do mesmo modo. Havia cordões ou fios, sei lá, amarrados em suas mãos, pés, troncos, cabeças. O mais assustador eram os fios que saiam de seus olhos, ouvidos e bocas e se entrelaçavam... De fato era uma cena grotesca.

– Agora você entende? Todos eles... Escravizados, presos a hábitos, rotinas, dogmas. Um grande homem propõe alguns termos em um contrato e assina com tinta vermelha e por mais de dois mil anos vocês deturpam suas palavras. E é com base nessa deturpação, nessas mentiras, que vocês norteiam suas vidas. É triste pensar nisso... Bom, acho que está ficando tarde, melhor eu ir embora. Se precisar de mais alguma coisa... Estarei por perto. Até a próxima criança.


Novamente ele esvoaçou no ar, desapareceu da mesma forma que da última vez. Quanto a mim, simplesmente sai da frente da TV.

Arte de Bernardo Fontaniello. Texto publicado originalmente aqui.

Conversas com a Morte - Parte 1



– Você consegue imaginar quantas pessoas existem no mundo neste exato momento?

Ele finalmente falou. Já havia perdido as contas de quanto tempo ele ficou ali, parado, apenas me encarando, por assim dizer. Nem sei se é possível afirmar isso. Não consigo ver seus olhos, apenas meu reflexo em seus óculos circulares. Por estranho que pareça, apesar de ser a primeira vez que o vejo assim, tão perto, não sinto medo, mas admito que sua presença me incomoda.

– Mais de oito bilhões – ele continuou – Oito bilhões de pessoas. Você tem alguma noção do que é isso? É quase inimaginável para alguém como você visualizar um número como este.

– Alguém como eu?

– Não me leve a mal. Não tenho a menor intenção de ofendê-lo, mas você é uma criatura de pensamento limitado. E não me refiro apenas a você, esta é uma das maiores e mais evidentes marcas de sua espécie. O ser humano é assim.

– Se você diz. Aliás quem é você?

– Por que me pergunta o que já sabe a resposta?

Ele sorriu enquanto eu tentava analisar um pouco mais meu visitante, aquele homem vestido elegantemente com um smoking negro, cartola e grandes óculos. Dei de ombros.

– Então no fim você é apenas um sonho, ou talvez uma alucinação.

– É possível, afinal você nunca foi um modelo de sanidade, mas acho que me definir como uma mera alucinação, ou mesmo um sonho, é fazer pouco caso de mim. Não criança, eu sou mais do que isso... Mas para ser sincero, o que eu sou não importa muito neste momento.

– Talvez então, seja melhor perguntar por que você esta aqui.

– Diga você.

– Eu?

– Sim você. É a primeira vez na sua vida que você deixou de me ignorar, que você olhou para mim. Mesmo assim estou realmente admirado, a maioria das pessoas, principalmente com sua idade, simplesmente finge que eu não existo até que chegue um momento em que não conseguem mais. Até que chegue um ponto onde tudo o que reste seja eu.

– Entendo. Mas devo admitir que até o momento você só levantou mais dúvidas, ao invés de respondê-las.

Ele riu novamente.

– Esse é o problema com vocês. Estão sempre tão ocupados em busca de respostas. A maioria das vezes, as questões nem são tão importantes assim. É realmente uma criatura curiosa o ser humano.

Desta vez eu que não contive o riso.

– Você fica falando essas coisas como se tivesse toda a propriedade do mundo, como se fosse uma espécie de deus, mas até onde que eu saiba você é apenas uma ilusão, uma ideia.

– Sua ideia. Estou aqui porque você quer que eu esteja. Você se acha muito especial, mas lá no fundo você sabe que não é. Você é apenas um grão de areia, igual a tantos outros. Eu sou o seu diferencial. É a minha presença que faz você ser quem você é. É a minha sombra, que te faz se esforçar pra deixar uma marca no mundo antes que nos encontremos de forma derradeira.

Fico em silêncio. Toda essa perspectiva me assusta. Nunca tinha parado para pensar em tudo isso, em quanto tempo ainda me resta. Talvez seja esta a maior maldição do homem. Ter ciência da morte, mas não saber quando ela virá... Morte, palavra engraçada. Tão aterrorizadora que preferimos ignora-la, fingir que ela não existe... Mas o mais gozado, é que quando ela está a sua frente, nem é tão amedrontadora assim. É apenas um simpático senhor, de smoking negro, cartola, grandes óculos redondos e segurando um relógio de bolso... Relógio? Sim, há um relógio em sua mão. Como eu não havia reparado antes?

– Ah, finalmente você o vê? Isso é bom... Tomou ciência de quem eu sou, mas principalmente de quem você é... Bom, mas já está ficando tarde e eu sei que você tem outros compromissos.

– Posso te perguntar mais uma coisa?

– Claro.

– O que eu faço agora?

Mais uma vez ele sorriu, mas desta vez foi diferente. Nas vezes anteriores havia um cinismo perturbador em seu gesto. Cinismo este que desapareceu, deu lugar a um sorriso doce, quase que patriarcal. Eu finalmente pude ver os seus olhos.

– Você não entende criança? Ver este relógio significa que você agora tem ciência que não é eterno. Que um dia, seja daqui a cinquenta anos, seja daqui a uma semana, você, como todas as pessoas, vai morrer. Mas isso tem seu lado positivo. Você pode fazer o que quiser, sem mais se preocupar com a opinião alheia. Seu mundo é você e ninguém mais. Isso é liberdade. Vocês são realmente criaturas curiosas...


Ele disse isso enquanto se desfazia no ar, como fumaça. Acho que voltarei a conversar com ele algum dia, mas até lá... tenho toda minha vida pra aproveitar.

Arte de Bernardo Fontaniello. Texto publicado originalmente aqui.